terça-feira, 13 de setembro de 2011

Redesenhando na minha memória o meu pai Miguel Rolinha

Chega um tempo que a vida necessita de memória, para mim é a coisa mais valiosa da qual  gosto de visitar.Vão-se os amores,as festas,o choro,as conquistas,o momento exato onde tudo isso acontece,fotografias ,vídeos,todos as formas de registros materiais que possam te lembrar ou representar.Mas sempre  tem momentos onde as tecnologias não alcançam,Ogum Xeroquê não permite mesmo,esses momentos são mágicos,encantados,tive domingo passado esta oportunidade mais uma vez
Nunca gostei de passear com meu pai, era um sofrer para a criança que existia em mim o espírito critico que meu pai sempre mostrou sem o menor pudor. Piadas racistas, palavrões, e os sotaques indecentes para as mulheres que passavam. Meu pai era meu anti-herói, era tudo que a minha menina e depois a minha moça detestavam, porem Miguel Rolinha era  genial, ele trazia musica para os ouvidos da nossa casa.
Nunca o vi lendo um livro, meu velho começa a inaugurar um tempo do homem negro que é sucesso entre as mulheres da classe média, ele foi Black mesmo sendo “boizinho” e entendia sobre Caetano como ninguém, alias meu progenitor era um grande estudioso da MPB. Veraneávamos ao som de Gil, Gal, Bethânia,Roberto Carlos, João Gilberto,João Bosco.Ele era de ficar esperando a loja abrir para adquirir o lançamento dos grandes nomes da MPB.Era um ritual divino,esperar meu pai chegar do pólo petroquímico,ouvir e ver rodando na radiola aquele disco,não esqueço da primeira vez que ouvi Vaca Profana e do discurso do meu pai,era na voz de Gal e como tinha feito uma grande má criação,o meu castigo foi copiar a letra e depois cantar a musica sem errar para ele.
Vem aqui na frente da minha memória os nossos sábados na casa da Estrada dos Carros,na primeira sala que ficava a radiola,a nossa casa da Estrada dos Carros é enorme(ainda é nossa,apesar de detestar ir lá,pelas lembranças que ainda me doem tanto,por tanta saudade de quem já foi e nunca mais vai voltar).Sempre brinquei de bonecas e desenhava muito,ficava jogada no chão,muito quietinha e calada, quando profº Zé Raimundo chegava falando em vários idiomas,totalmente embriagado(Zé parou de beber,tem muito tempo) e meu pai como se estivesse exibindo uma ave rara,declarava que ali estava a pessoa mais inteligente que ele já havia conhecido.Anos depois Zé Raimundo se tornara meu professor de fato e uma das pessoas que mais admiro em todo universo,não pelo fato da inteligência,mas por ser uma das criaturas humanas mais linda em gentileza e conhecimento sobre arte que conheço.
Sempre gritei na cara de Miguel Rolinha que jamais seria como ele, no entanto,me vejo mais parecida com o Miguel Black,contestador,cheio de afirmações,sonhos/projetos e amante da musica popular brasileira e acredito que por isto me vejo mais próxima de um Miguel que está ficando velho e só pensa em ficar rico e  que é um avó formidável,apesar dos gritos e das criticas carregadas de preconceitos.
Domingo passado foi um dia imensamente lindo, o sol que estava esplendoroso,mostrando mais ainda como Ivone mulher de meu pai é uma pessoa linda em todos os aspectos, como o Miguel que hoje é um homem velho,olha a vida e tenta acertar comigo,que sou dengosa e rancorosa demais,como meus filhos são felizes por ter ao lado o homem Miguel que perdoa a tudo,inclusive a minha falta de calor.Neste domingo de lindeza,onde eu renovei a vontade de ser gente,até a lua cheia celebrava comigo esse encontro da Patrícia rebelde com o Miguel sábio,meio franciscano quando conversa com seus bichos.Ouvíamos Caetano,cantando Lua de São Jorge e eu tive uma vontade imensa de chorar,ter uma câmara nas mãos e abraçar meu pai(eu não abraço meu pai,desde a minha primeira infância).Não chorei,não registrei e pior não abracei,ser gente é deveras difícil, a gente se torna forte e com isso se transforma numa matéria dura que não volta em gestos.Talvez amar seja também isso,memória,num mundo tão material de necessidades palpáveis, ter esse momento silencioso de absoluta certeza de que se ama e que se é amada,seja um dos grandes momentos para ser guardado e visitado muitas vezes,porque é concreto(ando tendo poucas certezas ultimamente)que essa memória é preciosa  caixa que a gente constroi com toda lembrança de paz.

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